Companheira
inseparável das mazelas humanas desde que o homem convive socialmente, ela, a
CULPA é parte integrante do crescimento de qualquer indivíduo, e velha
conhecida de qualquer psicoterapeuta.
A questão do
“por que sentimos culpa” não se deve exclusivamente à pessoa que sofre com ela.
A culpa é uma questão de relação entre indivíduos, que transcende qualquer tipo
de análise que possa ser focada unicamente na pessoa que a sente.
Gostaria de
abordar neste texto as condições envolvidas para o aparecimento da culpa e como
ela se mantém no comportamento dos indivíduos ao longo de suas vidas. Talvez o
mais difundido comportamento social da espécie humana seja a punição. Punimos
porque estamos zangados com uma pessoa, punimos a mesma pessoa porque estamos
zangados com outra, punimos porque amamos alguém e isso é para o bem dessa
pessoa. Punimos abertamente, punimos nas entrelinhas com palavras, entonação,
olhares, e punimos aquilo que as pessoas fazem em proveito próprio, mas que nos
prejudica de alguma forma. Punimos dando e retirando nosso afeto.
Talvez o afeto
dos outros seja a forma de interação social mais desejada. Buscamos o afeto
agradando ao outro, fazendo o que o outro gosta, sendo bem-sucedido, cuidando
da aparência, e, sobretudo, não procurando desagradar ninguém que nos seja
importante.
Afeto e
punição: é deles a culpa.
Quando era
pequeno, gostava que minha mãe fosse amável comigo, me desse carinho e atenção.
Eu fazia muitas coisas para conseguir isso.
Eu não era
muito bem-sucedido sempre.
Quando era, me
davam afeto e carinho.
Quando não
era, eu recebia uma palmada e era deixado por um tempo sem o carinho e afeto
que tanto desejava.
Diziam-me
algumas coisas que, na época, não compreendia bem:
“Menino feio, não pode fazer isso, por
sua culpa mamãe agora tá brava”
etc.
Tal cena não é
tão incomum de se ver por aí. E não tem nada de mais as mães quererem controlar
o comportamento de seus filhos. Afinal, elas estão aí para isso. E a punição é
o modo mais comum e disponível de se fazer isso.
Culpa delas,
não...
Mas isso tem
algumas conseqüências divertidas sobre o nosso comportamento.
Uma pequena
história:
Quando fiquei
um pouco mais velho e cheio de vontades, aprendi a não deixar de fazer as
coisas que queria, como também continuei gostando desse vício que é ser gostado
por outros.
Mas duas
coisas me aconteceram: comecei a gostar muito de doces.
Eu passei a
compreender o que as pessoas falavam.
A conseqüência
dos doces foram quilinhos a mais, que tanto preocuparam minha mãe e o meu
médico.
O efeito de
compreender o que os outros falavam pode ser vista abaixo:
Um dia, após
muito tempo de regime e controle do meu peso, soube que minha tia havia deixado
um pote cheinho de Biscoitos Chocolate Chips Cookies em um recipiente com a
cara do Mickey mouse na cozinha da minha casa.
Estranhamente,
durante três dias, a cozinha me pareceu um lugar mais atrativo do que já era.
No fim do
terceiro dia, então resolvi dar uma conferida no pote com a cara do Ratinho
americano só pra ver o que tinha dentro.
Estranhamente,
na hora não havia ninguém em casa também.
Ao abrir o
recipiente, fui atacado por um aroma delicioso de baunilha, que me deixou muito
feliz. Ao aproximar o nariz, senti então outro aroma dos deuses, que foi o das
pequenas e semiderretidas gotas de chocolate, que parecia passar do meu nariz e
atacar diretamente alguma glândula obscura do meu cérebro.
COMI!
Talvez a mais
sublime elação sentida na minha vida foi aquela dentada na massa macia e
saborosa daquele biscoito. Possivelmente exibi um sorriso digno de um livro de
recordes.
MENINO!!!!!! O
QUE ESTÁ FAZENDO?
Olhando para o
lado, vejo, nada mais, nada menos, que minha progenitora a me fitar com uma
cara que me lembrou instantaneamente a cara que tantas vezes fez depois de me
dar uma palmada quando era menor. Podia quase sentir meu traseiro latejando no
momento.
Oi,
mãe...........er......... você por aqui? (falando e cuspindo farelos, meu
sorriso agora era mais amarelo do que uma camisa da seleção).
EU NÃO
ACREDITO NISSO!
EU ME MATO
PARA TE AJUDAR,
PERCO MEU SONO
DE PREOCUPAÇÃO COM A TUA SAÚDE
E MEU DINHEIRO
PRA TE LEVAR NO MÉDICO.
A CULPA É SUA
SE VOCÊ ENGORDAR TUDO DE NOVO E VOLTAR A TER PROBLEMAS...
VOCÊ NÃO TEM
JEITO MESMO.
Eu poderia ter
dormido melhor na minha vida se ficasse sem compreender o que os outros dizem.
Mas,
traduzindo o que minha mãe disse na hora, soaria mais ou menos assim, nos
ouvidos do menino:
Se ela se mata
para me ajudar, significa que o que eu fiz (comer biscoito) a prejudicou
também. Seu esforço em me ajudar foi em vão.
Se ela perde o
sono, significa que minha saúde a está deixando mal e preocupada.
Se ela perde
dinheiro, significa que por minha culpa não vou ganhar presente de Natal.
Devido à minha
pessoa, que come doces, minha mãe sofre, e eu vou sofrer também.
Tudo isso
significa que é bem provável que agora minha mãe goste menos de mim.
E, de repente,
me lembro dos tempos em que perdia o afeto dela.
Junto a isso
ocorrem pensamentos de que é tudo por minha causa, eu realmente não tenho
jeito. Sou fadado a sempre não ter o que eu gosto e, se eu tiver o que eu
gosto, eu perco outras coisas também. Como o tão necessário afeto da minha mãe.
Em suma, eu
não tenho jeito mesmo. Sou CULPADO por minha ruína.
- Mãezinha?
- Sim,
filhinho?
- Você ainda
gosta de mim?
- Gosto sim...
Mas só se você parar de comer.
O texto acima
é ilustrativo do mecanismo básico do processo de ocorrência da culpa.
Uma pessoa
quer ter acesso a certas coisas boas do mundo, tais como comida, afeto,
liberdade de agir, etc.
Essas coisas
são mediadas por pessoas relacionando-se em comunidades ou instituições:
família, Igreja, trabalho.
Muitas vezes,
o que é recompensa para um indivíduo não é agradável a outros indivíduos que
estão envolvidos na sua obtenção. Logo, surgem sanções AO INDIVÍDUO. Por
exemplo, uma pessoa que fuma tem seu prazer com o fumo. Mas, para seu cônjuge,
pode ser aversivo, visto que o cigarro pode matar a pessoa que se ama. Uma
pessoa tem prazer em relações homossexuais, mas isso é aversivo para sua
família e seu grupo de amigos. A pessoa que fuma pode perder o afeto do cônjuge
se insistir com seu vício. O homossexual pode perder o afeto, o respeito, e ter
o afastamento das pessoas que ama se contar sua condição.
Ao fumar, o
fumante lembra-se das palavras ditas pelo cônjuge: "Se você morrer de
câncer por causa do cigarro eu vou sofrer. Você está acabando com você e comigo
também".
Ao ter uma
relação homossexual, o homossexual lembra-se que, se continuar com isso, com
certeza terá menos respeito e afeto da família, e imagina cenas de brigas, de
humilhação e verbalizações de sua família condenando seu comportamento homossexual.
Esse
sentimento misto, de se ter algo de que se gosta, mas isso, ao mesmo tempo,
produzir aversividade nos outros (que, por sua vez, nos punem ou retiram nossas
recompensas, especialmente as afetivas), é o que chamamos de culpa.
Culpa advém das
regras do grupo em que se vive e se valoriza. Se não valorizássemos as outras
pessoas de nossas relações, não sentiríamos culpa quando fizéssemos coisas que
as levariam a sofrer. Seríamos indiferentes e não sentiríamos a aversividade da
culpa.
O problema
maior da culpa é a questão de imporem-se sanções AO INDIVÍDUO e não ao
comportamento específico que produz alguma conseqüência aversiva para os outros
e para si.
A fala da mãe
do menino, ao repreendê-lo, foca-se na idéia de que o indivíduo é o responsável
pela situação, e não uma de suas muitas ações diárias que pode ser passível de
modificação por outros métodos. Daí a culpa estar ligada a pensamentos de
autodesvalorização, de menos valia, de irresponsabilidade. Pune-se o indivíduo
e não somente a parte de seu comportamento que é problemático; então, ele
pensa: “eu valho pouco”.
Modificar essa
relação causal entre comportamento inadequado – sanção social, retirada de
recompensas, sentimento de culpa e autodesvalorização, não é fácil.
É necessário avaliar
quando a culpa é ou não funcional. Sentir-se culpado por ferir seu irmão menor
ou algum animal indefeso é socialmente funcional. Sentir-se culpado pelo
divórcio dos pais é uma fantasia prejudicial. Sentir-se culpado por algum erro
e, então, não cometê-lo novamente é funcional. Sentir-se culpado por não
conseguir fazer algo que está além de suas possibilidades é algo prejudicial.
A Terapia
Comportamental tem-se mostrado eficaz na diminuição da culpa não funcional, por
meio de reformulações de regras, mudanças de atitudes, e valorização do
indivíduo, retirando deste a idéia de que suas atitudes errôneas que o fazem
sentir-se culpado são como uma doença da qual não consegue livrar-se.
Todos nós
dependemos e sempre dependeremos do afeto dado pelo outro. Apenas devemos ter
consciência do nosso real valor e de que, algumas vezes, outras pessoas não
darão esse afeto de propósito, mas que isso não nos diminui como indivíduos, e
que poderemos sempre nos modificar para sermos mais felizes.
Por: Adilson
Klier Péres Junior
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